quinta-feira, 29 de março de 2012

Biblioteconomia 2012


Parte da turma, junto com a professora Pricila Lima.... Ta acabando genteee, força que no final tudo vai dar certo!

terça-feira, 13 de março de 2012

Lili e os moinhos








Lili, moça bonita e extrovertida, o que não é comum entre as jovens que optam pela biblioteca como ambiente de trabalho, logo após a sua formatura foi trabalhar no Colégio Piratinga. Entrou otimista, sondou o ambiente e, armada de projetos e sonhos, avançou certa da concretização de seus ideais bibliotecários. Para isso, contava, além do que aprendera na escola, que ela sabia ser pouco, com um encanto pessoal que, em alguns casos, vale mais que as tabelas de classificação e todos os códigos da Biblioteconomia.

O Colégio Piratinga, particular, recebia os filhos da classe média alta, aquelas cujos pais planejam para os seus rebentos um diploma de médico, engenheiro, administrador de empresa e semelhantes, o que poderia colaborar para manter a classe da família. Servindo a essa clientela, o C.P. oferecia benefícios não-usuais aos alunos comuns da rede oficial de ensino. Como escola paga, deveria mostrar algumas vantagens - o suficiente para manter o seu quadro discente completo. No Piratinga as tais "melhores condições de ensino" como, por exemplo, laboratórios e biblioteca, eram mais, muito mais, que a retórica das passeatas de professores com baixo salário e desempenho equivalente. O C.P. pagava bem. Lili, inclusive, estava exultante com a oferta que recebera. O valor era superior a esquálidos holerites pré-aposentadoria que muitas colegas, aquelas pioneiras, ocultavam com resignação.

Como Lili obtivera aquele emprego "caído do céu", como diziam? Além das absolutamente necessárias indicações e referências, era impossível não perceber o entusiasmo da moça em relação a algo que, efetivamente, não animava ninguém. Havia sim uma Biblioteca no C.P., uma saleta mal iluminada, um leve odor de mofo, livros do tempo da fundação da entidade (logo após a Revolução Constitucionalista), algumas doações inúteis de órgãos de governo e, por certo, traças. Era um local adequado aos alunos mais irrequietos. Bastava a ameaça: "eu te mando para a Biblioteca" e a classe ficava em completo silêncio.

Lili, acompanhada pelo Diretor do Estabelecimento, viu aquele cenário levemente lúgubre e conseguiu improvisar uma entusiasmada seqüência de idéias, mesmo que o ambiente não oferecesse qualquer tipo de estímulo. Ganhou o emprego e a simpatia do Chefe graças ao brilho (e à cor) dos seus olhos. E, ainda, promessa de apoio.

Aí estava o desafio de Lili: implantar uma biblioteca útil. Era preciso obstinação, sem dúvida, e das fortes, daquelas que, eventualmente, podem ser identificadas como teimosia. No entanto, quase desistiu do emprego no primeiro dia de trabalho. Chegou em casa exausta, espirrando muito, o seu primaveril vestido lamentavelmente empoeirado. A noite, antes de dormir, fez uma profunda reflexão sobre a guerra suja que teria pela frente e resolveu ir adiante. Lili era alérgica à pó e isso não seria um obstáculo à sua força de vontade demolidora. Pelo menos não era claustrófoba.

O primeiro gesto radical de Lili ocorreu logo na primeira semana de atividades. Fez uma seleção rápida das obras perfeitamente inúteis como, por exemplo, listas telefônicas velhas ou mutiladas e promoveu uma fogueira no pátio, sem pensar na frase que lera em algum lugar sobre a queima de livros como predecessora da queima de homens. Como exercia com muito jeito algumas práticas típicas dos profissionais de relações públicas e políticos em geral, anunciou no Colégio todo a fogueira dos livros. Os próprios alunos, com prazer, ajudaram-na a carregar os volumes para o pátio. Alguns até sugeriram que a queima poderia ser efetuada no interior da própria Biblioteca - o que daria menos trabalho e seria uma ação mais completa. Prevaleceu a idéia original do incêndio ao ar livre. Naquele dia, Lili conquistou o Piratinga. Alguns professores ficaram preocupados, não com a forma de separar as obras inúteis das utilizáveis, mas com a agitação e a pirotecnia do evento.

Com as estantes vazias (quase a metade), Lili preocupou-se com dois grandes problemas: descupinizar o ambiente e ampliar o acervo. Fez junto ao Diretor uma descrição tão pavorosa da ação desses insetos que poderiam destruir todos os livros,inclusive, os valiosos arquivos da Secretaria, que uma firma foi contratada imediatamente para eliminar cupins, traças e quaisquer outros bibliófagos. O segundo problema era muito mais grave: o C.P., em seu orçamento, não incluíra a aquisição de livros. Não dá para comprar livros sem recursos. A idéia geral é que sempre haverá alguma boa alma que esteja querendo limpar a casa e doar uns livros dos filhos que não servem mais aos netos.

- Como é possível formar sem informar? perguntou Lili.

- Aqui a formação e a informação são dadas em sala de aula, desculpou-se o Diretor.

Lili ficou surpresa com a argumentação, mas naquele momento não encontrou nenhuma resposta adequada, além da mais tradicional para essas situações:

- Bem, Senhor Diretor, o jeito é fazer uma campanha para a obtenção de recursos para a compra de livros.

O Diretor respondeu com os ombros, eloqüentes, não deixando dúvidas: esse assunto não lhe dizia respeito. Lili aceitou o desafio. Iria movimentar a Associação de Pais e Mestres e os próprios alunos, faria uma barraca na tradicional festa junina, realizaria concurso de beleza, rifas, livro de ouro e o que fosse necessário para não deixar a Biblioteca naquele estado de penúria. Inclusive, aceitaria doação de livros, desde que fossem novos ou, pelo menos, quase.

Em menos de três meses, Lili arrecadou o suficiente para comprar cerca de oitocentos obras. Das três mil doações, foram aproveitados uns duzentos volumes. Além disso, incluíram-se na compra discos, diapositivos, mapas, tudo isso uma grande novidade para o Piratinga. Com esse empenho e sucesso, certamente, estava aberto o caminho para novos problemas. Por exemplo: aonde colocar aquele material todo? Nova batalha tomou todo o tempo e emoções de Lili: a conquista de um espaço mais adequado à nova Biblioteca. Ela dizia a palavra "nova", escandindo as sílabas. Palmo a palmo, o terreno foi sendo tomado. Não exatamente como ela queria, mas a área ampliou-se pelo menos três vezes, ocupando salas adjacentes e ganhando, com isso, alguns inimigos. Em pouco tempo, o cenário estava mudado. Logo na porta, no alto, afixara uma placa que dizia: "aqui, a sua liberdade". Parece que a frase causou alguma perplexidade.

A inauguração foi festiva. Pais e alguns mestres compareceram. A Biblioteca não parecia ter saído dos manuais de Biblioteconomia. Havia uma estante com novidades onde os volumes não mostravam a lombada, mas a capa. Num móvel improvisado estavam dois jornais do dia (Lili conseguira a doação das assinaturas) e algumas revistas. O que não existia mais era bolor, insetos, fungos e o "inferninho", armário onde almas piedosas trancafiavam livros que pudessem comprometer a boa formação dos alunos. Ali estavam O Cortiço, O Crime do Padre Amaro e outras obras que pudessem pôr em dúvida o bom nome do Colégio. Lili entendeu que a classificação era por assunto e não pela gradação moral da obra. Por isso, o livro de Eça de Queiroz foi parar mesmo na área reservada à literatura portuguesa.

No dia seguinte à inauguração, Lili madrugou na Biblioteca Comendador Saraiva - o nome que, por decisão da Diretoria, foi dado à nova repartição - à espera do primeiro leitor. Ele demorou a chegar e não manifestou interesse especial pelo acolhimento de Lili: queria apenas "fazer pesquisa" naquele "livro grande". O alvo era Frei Caneca e o tal livro, a Enciclopédia Barsa. O verbete foi localizado e o aluno se pôs a copiar. Lili observou que, esgotado o verbete, o menino pulara para o seguinte. Logo depois, a jovem bibliotecária ouviria a frase que a perseguiria por um bom tempo:

- Tia, até onde eu copeio?

"Está tudo errado", concluiu Lili. A partir daquele momento percebeu que não adiantava muito ter uma bem instalada Biblioteca, acervo rico e tudo continuar na mesma, como se a Biblioteca fosse ainda aquele lixo mofado. A bem da verdade, por vários dias a freqüência foi baixíssima, como antes. E cada um que chegava repetia o ritual: buscava o verbete para ser copiado. "Assim é que o professor quer", defendeu-se um aluno acossado por Lili com vários outros livros sobre o assunto que o "pesquisador" rapidamente copiava.

Quando a Biblioteca ficava vazia, Lili punha no velho toca-discos doado um Vivaldi ou Mozart (o seu preferido). Nesses momentos, ela ficava atenta, à espera de algum aluno que, atraído pela música, lá entrasse. Não adiantava. "Será o repertório?", indagou Lili, pronta a pôr em prática o que fosse possível para atrair o seu público. Um dia ousou: um rock. Nada aconteceu. Sentiu-se ridícula. Os alunos só entravam na Biblioteca quando algum professor exigia as invariáveis pesquisas. De seu vasto arsenal de iscas para capturar leitores localizou algo que, talvez, pudesse destruir aquela horrível rotina que reduzia o seu rico acervo a uma única enciclopédia. Resolveu colocar em prática algo que não aprendera na escola: fazer uma gibiteca. Não era disso que os adolescentes gostavam? A reação foi de espanto discreto. Não dos alunos, mas de alguns professores que entendiam ser aquilo um desestímulo à boa leitura. Lili espalhara uma série de cartazes: "gibis na Biblioteca" diziam eles ilustrados com figuras do Pato Donald, Tarzan, Mônica, Fantasma, Zorro, Super-homem e outras mais. Isca infalível. Alguns curiosos apareceram. A jovem e irrequieta bibliotecária que introduzira o carnaval no templo observava com muita atenção os movimentos de seu querido público em torno dos gibis. Depois de alguns dias, percebeu que eram sempre os mesmos que iam remexer a caixa onde eles eram guardados. E ainda: por mais que destacasse livros e revistas, colocando-os ao alcance dos olhos e das mãos dos leitores de gibis, estes não pareciam servir de iscas para aqueles. Os alunos devoravam as aventuras dos super-heróis, deliciados, mas não queriam saber do biscoito fino da leitura de livros propriamente ditos.

A imaginação de Lili era, de suas qualidades, a mais destacada. Notou um fato significativo, mesmo sendo óbvio: os alunos faziam as suas pesquisas depois das aulas. "Porque não antes?" perguntou-se na solidão de sua Biblioteca quase vazia. Para ela estava claro que os alunos só realizavam as tais pesquisas porque era obrigatório. Se não fosse, nem mesmo abririam as enciclopédias. Biblioteca era igual a pesquisa e pesquisa igual a um dever. Nunca um prazer. Mas isso é problema de bibliotecários ou de professores? Por que Duque de Caxias não passava de um mero verbete? E que nem era lido, mas transposto caligraficamente para folhas que, depois, receberiam algum adorno e, pronto, tudo era entregue ao professor de História. Não havia segredo para passar de ano.

Foi então que Lili desconfiou que poderia aliar-se aos professores. Pediu a eles que sugerissem novos livros aos alunos para que ampliassem as possibilidades de leitura. Parece que isso não alterou nada, pois os professores não respondiam com empenho os formulários que lhes eram enviados com o objetivo de organizar a bibliografia básica a ser usado no Colégio. O retorno foi de 12%, baixíssimo. Poucos mestres tiveram a pachorra de indicar livros que pudessem ser alternativos aos verbetes. E quando isso acontecia e Lili comprava as obras, colocando-as ao dispor dos alunos, eles passaram simplesmente a copiar os livros indicados, preenchendo as expectativas daqueles que, por dever de ofício, deveriam avaliar os trabalhos, dar notas, aprovando ou reprovando. Lili percebeu que, dificilmente, escaparia daquela fatalidade burocrática de indicar os livros para serem copiados - sempre depois das aulas.

Ocorreu-lhe, então, uma nova idéia de campanha: convencida das potencialidades de uma pesquisa a ser feita pelos alunos, de fato, antes das aulas, empreendeu um novo e avassalador esforço de divulgação: "pesquise antes". Isso, evidentemente, iria lhe custar muito. Teve de inteirar-se dos currículos e programas de ensino. Ela queria antecipar a Biblioteca à sala de aula. Era uma idéia inovadora, uma proposta que mudava a rotina, mas a bibliotecária não poderia imaginar que lhe trouxesse tantas turbulências.

Conseguindo o programa de ensino do Piratininga, Lili programou a Biblioteca. Claro que não pode dar uma cobertura completa, pois seriam necessários espaço e acervos maiores. Mas isolou alguns temas. Um deles, por exemplo, foi a Guerra do Paraguai. Lili organizou um painel especial sobre o assunto: juntou livros a recortes e frases de sua criação. Uma delas: "Caxias é um herói ou um bandidão genocida?" Os alunos ficaram intrigados. Afinal, o Duque era sempre homenageado em ruas, praças e estátuas eqüestres, inclusive em salas de aula. Bandido? "Descubra aqui", dizia outra frase, sobre uma série de indicações bibliográficas. O painel fora enriquecido, ainda, com referências a pintores da época e à música que se fazia no Brasil naquele período do Segundo Reinado. A novidade espalhou-se pela escola. Livros que por longas semanas permaneceram virgens passaram a ser disputados. Na própria Biblioteca, espontaneamente, formaram-se grupos de discussão, dos quais até Lili, deliciada, participava.

Aí as desgraças começaram a ocorrer. Quase custaram o emprego da aplicada e promissora bibliotecária do C.P. No dia da aula referente à Guerra do Paraguai, ocorreu um inédito e inquetante episódio: o professor quase foi trucidado pelos alunos que ergueram os seus dedinhos impertinentes, lançando questões que o programa de ensino não abarcava. Em pouco tempo, o abúlico professor, que há décadas ruminava as suas narrativas históricas, foi obrigado a recorrer ao seu paiol de armas para pôr ordem na classe. Os alunos pareciam enfurecidos, fazendo perguntas agressivas, verdadeiros insultos ao herói nacional. De onde viera aquela desintegração? Quem é que andava semeando dúvidas? Por que os alunos não ouviam apenas? E sem que ninguém nos ouça: eles estavam fazendo perguntas que o mestre não sabia responder. Teve que impor a sua autoridade. Naquele dia fatídico o professor saíra revoltado da sala, sentindo-se ultrajado pela petulância daqueles fedelhos que achavam ter mais conhecimentos do que ele. Sem dúvida, havia uma inversão de valores. Afinal, professor existia para ensinar e aluno para aprender, não é mesmo?

Posteriormente, ocorreu outra cena memorável na aula de Português, quando uma aluna corrigiu um dado referente à biografia de Machado de Assis que estava sendo monotonamente destilada. "Quem sabe mais, eu ou a senhora?" perguntou a mestra que, prestes a se aposentar, nunca se sentira tão humilhada como naquele episódio. Por algum tempo, cenas assim foram se repetindo pelas classes do Piratinga. Diagnosticou-se, de início, uma" crise existencial da juventude". Um dia, um professor, um dos raros a pôr os pés na Biblioteca, pois habitualmente lia os jornais recebidos, viu um dos painéis de Lili. Leu, releu, intuiu. Num relâmpago, teve a certeza: ali estava a origem da ação desagregadora que se observava no Piratinga. Quem diria, a Biblioteca? Ela nunca havia dado trabalho, sempre fora apenas um apoio didático. É verdade que aquela bibliotecária tinha antecedentes: ela criara a gibiteca e promovera aquela espantosa queima de livros no pátio. Agora, fazia esforço para criar dúvidas. Escola não deve criar dúvidas, mas resolvê-Ias, dando as respostas corretas. Aluno não tem maturidade para ler de tudo e discernir. Assim, vai acabar não fixando nada.

Naquele mesmo dia, o professor-detetive fez um relato minucioso na sala onde os mestres se reuniam para tomar café, apostando na ação pérfida da bibliotecária como a causadora daquela indesejável agitação dos alunos em sala de aula. A certeza sobre o caráter subversivo da bibliotecária espalhou-se rapidamente. "Dona Lili, não vás além das sandálias", alguém dissera na reunião dos professores. Quem pensava que era para interferir nas salas de aula?

Ali mesmo foi esboçada redação de um documento dos professores a ser encaminhado à Direção do Piratinga. Nele Lívia Maria Nabuco, Lili, era acusada de perturbar o processo normal do ensino, induzindo os alunos a leituras pouco recomendáveis aos propósitos de uma escola tão tradicional como aquela. No final do documento, diziam os professores: "Pedimos a V.Sa. a gentileza de determinar à Biblioteca Comendador Saraiva que se atenha unicamente à bibliografia recomendada e, especialmente, às obras adotadas pelos professores como diretrizes para as aulas. Qualquer desvio, poderá sentir V.Sa., será uma ameaça à autoridade que os professores precisam manter junto ao corpo discente. Leituras que não as indicadas serão vistas como elementos de perturbação do trabalho pedagógico pelo qual somos os únicos responsáveis". O documento alongou-se em reflexões sobre a autoridade do professor, os perigos da falta de disciplina, a responsabilidade educacional, sugerindo medidas para restabelecer a ordem.

O Diretor do Colégio ao receber o abaixo-assinado levou um susto, não imaginando que Lili pudesse ser uma figura com tanta periculosidade. Chamou-a à Diretoria, e apresentou o documento. Lili não mexeu um músculo, mas percebeu que, enfim, pudera participar de forma significativa da vida daquela instituição na sua busca de "melhoria do nível de ensino". E foi isso que Lili disse ao Diretor, cândida e serenamente. Ele fez a sua obrigação: advertiu a sua funcionária, pedindo a ela que não lhe criasse problemas, evitando comprometer o bom nome do Colégio e a confiança que os pais tinham nele. Lili ouviu tudo, prometeu refrear as suas ações e continuou, através de seu trabalho, lutando como um Dom Quixote contra o ponto final da autoridade em favor das vírgulas e das conjunções adversativas. Mas não pôde cumprir a promessa. A freqüência à Biblioteca aumentava dia-a-dia, os alunos iam diretamente às estantes vasculhar o acervo, alguns passavam o dia lá. Parece que encontravam naquele espaço a liberdade que, habitualmente, a sala de aula lhes negava. ...

(Fonte: MILANESI, Luís. Lili e os moinhos. In: ________. A casa da invenção. 3.ed. São Caetano do Sul: Ateliê, 1997. p. 150-157.)

sábado, 3 de março de 2012

Um sonho possível



                                                 Um Sonho Possível



Emocione-se


Um Sonho Possível (The Blind Side, 2009) chegou aos cinemas sem grande expectativa ou alarde e, aos poucos, conquistou números de bilheteria inesperados para seu gênero e algumas indicações ao Oscar. No entanto, ficava a interrogação: por que um filme aparentemente tão inexpressivo estava concorrendo ao prêmio de Melhor Filme do ano? Existe nele algo mais que uma história de superação pelo esporte?

Logo nos primeiros minutos de projeção, a decoradora e ex-cheerleader Leigh Anne Tuohy, personagem de Sandra Bullock, explica o título original do longa, um termo derivado de táticas do futebol americano. Como é um esporte tão distante de nosso cotidiano, a explicação se faz pertinente, já que o termo "blind side" servirá de premissa para toda a história: quando um quarterbackdestro se prepara para um passe, o atacante esquerdo de seu time deve proteger seu lado cego, que seria como o ponto cego de um carro, de um ataque do time oponente. Esta explicação também já assinala claramente os dois núcleos da narrativa, já que normalmente este atacante tem um porte físico bem definido pela altura e força, características presentes no problemático adolescente Michael Oher, o Big Mike, interpretado na medida certa porQuinton Aaron.

Big Mike é negro, obeso e filho de uma mãe viciada, que não consegue combinar a preocupação de sua próxima dose ao cuidado com os filhos. Marcado pela rejeição, Big Mike cresceu pulando de um lar adotivo para o outro sem nunca encontrar acolhimento verdadeiro. Os vários traumas de sua infância fazem com que ele pareça um grande vazio intransponível. Ele finge indiferença e burrice, beirando aparentar deficiência mental - mecanismos de defesa psicológica contra mais traumas. Quanto menos envolvimento ele tiver com o que acontece ao seu redor, menor será a dor.

Sua vida começa a mudar quando seu pai adotivo do momento decide matriculá-lo em uma escola particular cristã. Mesmo sem notas suficientes para acompanhar o currículo rígido do colégio, ele é admitido pela possibilidade de render algumas vitórias esportivas e também pelo argumento cristão da caridade. No colégio, ele cruza o caminho da família Tuohy, o mais perfeito exemplo do sonho americano: Leigh Anne é a mãe, uma perua rica, mas consciente e de valores cristãos; seu marido, Sean (Tim McGraw), é um ex-jogador de basquete que, ao deixar a carreira por uma lesão, comprou vários restaurantes da franquia de fast-food Taco Bell e vê o dinheiro entrar sem muito esforço; e seus dois adoráveis filhos: a insossa adolescente Collins (Lily Collins) e o espevitado S.J. (Jae Head).

Ao encontrar Big Mike sozinho na rua em uma noite fria, Leigh Anne decide simplesmente levá-lo para sua casa e dar-lhe uma cama, comida e basicamente tudo que ele nunca teve: uma família estruturada. Compreendemos o passado sofrido do garoto mesmo sem as cenas de violência - desnecessárias, uma vez que as feridas emocionais estão impressas no corpo do ator. Os Tuohy então o acolhem, acreditam em seu potencial e incentivam seu desempenho nos esportes, pagam uma professora para que ele melhore na escola e, assim, Big Mike vislumbra a possibilidade de cursar uma universidade e jogar futebol americano profissionalmente. Como força motriz deste processo de superação está Sandra Bullock, lutando até quando o próprio Big Mike pensa em desistir. Vemos a atriz em uma performance entregue e evoluída, mas coerente com a carreira que trilhou até aqui; uma boa atuação dramática, mas sem deixar de ser Sandra Bullock.

Com a direção nada original de John Lee Hancock, que inocuamente segue as regras de um drama hollywoodiano, o filme é tocante, mas beira o artificial - ele é feito para atingir o emocional do espectador. Temos aqui uma história de amor. Não o amor romântico vivido tantas outras vezes nas telonas, mas sim um amor altruísta, que está disposto a se doar ao próximo sem esperar nada em troca. Assim, é compreensível o sucesso que o filme fez nos Estados Unidos, ainda mais sabendo que é baseado na história verídica do atual atacante dos Baltimore Ravens, contada no livro The Blind Side: Evolution of a Game. Um Sonho Possível encontrou em seu público aquele lado que acredita no Bem maior, mas não tem a coragem de agir com as próprias mãos. Então é mesmo mais fácil projetar em Leigh Anne Toughy as esperanças de uma humanidade caridosa e altruísta e sair do cinema acreditando que realmente é possível ajudar o próximo.
                                      


Coração de Tinta <3



Toda a fantasia de Coração de Tinta é baseada no best seller de Cornelia Funke, cuja história lança um pai dedicado e sua filha numa jornada através de diversos mundos - reais e imaginários. Mortimer "Mo" Folchart (Brendan Fraser) e sua filha Meggie (Eliza Hope Bennett), de 12 anos de idade, compartilham uma imensa paixão por livros e suas histórias. Entretanto, ser leitor ávido não é a única característica peculiar de Mo, que guarda um segredo: um talento fabuloso. Embora Meggie não saiba, seu pai é capaz de dar vida a qualquer personagem dos livros que ele lê em voz alta, trazendo-os para o nosso mundo. Mas como todo grande dom carrega grande responsabilidade, para cada personagem que ganha vida em nosso mundo, alguém real se transporta para as páginas dos livros. Em uma de suas visitas a um sebo perdido, Mo escuta algumas vozes que não ouvia há muito tempo. Quando ele encontra o volume de onde elas partem, um calafrio percorre sua espinha. É Coração de Tinta, um livro repleto de ilustrações de castelos medievais e criaturas estranhas - é o livro que ele procura desde que Meggie tinha três anos de idade, quando sua mãe, Teresa (Sienna Gillory) desapareceu dentro daquele mundo místico. Porém, o plano de Mo para encontrar o livro e utilizá-lo para resgatar Teresa é frustrado quando Capricórnio (Andy Serkis), o vilão maligno de Coração de Tinta, seqüestra Meggie e obriga Mo a trazer outros personagens malévolos para o nosso mundo. Determinado a resgatar sua filha e devolver os personagens ao lugar onde pertencem, Mo reúne um grupo improvável e meio maluco de aliados - tanto do mundo real, quanto do literário - e embarca numa jornada perigosa e arriscada para devolver a ordem ao mundo.

Mestre confeiteiro

O diretor francês Jean-Pierre Jeunet
cria uma Paris de fábula, e uma heroína
de sonho, em Amélie Poulain


Audrey Tautou como Amélie: uma garçonete a serviço da felicidade alheia



Filha de "um refrigerador e uma neurótica", como diz o narrador do filme, a pobre Amélie Poulain teve uma infância incomum. Seu pai, um médico, era tão avesso a carinhos que bastava o toque de seu estetoscópio no peito da menina para que o coração dela disparasse de emoção – razão de ele ter diagnosticado Amélie como vítima de uma anomalia cardíaca. Deprimido pela neurastenia dos Poulain, o peixinho dourado da família tentou repetidas vezes se matar. Mamãe tanto rezou por um filho homem que, numa de suas visitas à igreja, foi involuntariamente assassinada por uma turista suicida, que escolheu aquele momento para se jogar do alto da torre. De certa forma, foi o que deixou Amélie livre para apreciar os pequenos prazeres da vida. Realmente pequenos, diga-se. As coisas favoritas de Amélie são mergulhar as mãos em sacas de cereais na mercearia, quebrar a crosta açucarada do crème brûlée com a colher e atirar pedrinhas na água, para vê-las ricochetear. Esses e muitos outros eventos sobre a formação da protagonista são narrados a toda a velocidade, em tom de desenho animado, durante a primeira meia hora de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain, França/Alemanha, 2001), que estréia nesta sexta-feira em São Paulo e no Rio de Janeiro. O filme é um dos maiores fenômenos da história recente do cinema francês, e com motivo. Dirigido com entusiasmo palpável por Jean-Pierre Jeunet e estrelado pela irresistível Audrey Tautou, de 23 anos, Amélie é uma obra-prima da confeitaria: não tem grande teor nutritivo, mas seu sabor e sua apresentação são o que de melhor um pâtissier competente e criativo pode produzir.
Feitas as devidas apresentações, o filme se ocupa de mostrar os rumos insólitos que a vida de Amélie – agora uma solitária garçonete do café Deux Moulins, no bairro de Montmartre – toma a partir de 31 de agosto de 1997, dia em que a princesa Diana morreu num acidente em Paris. Atônita com o noticiário, Amélie deixa cair a tampa do seu perfume, que atinge um ladrilho do rodapé. Atrás dele, a protagonista encontra uma caixa em que algum menino, décadas antes, escondeu seus pequenos tesouros: bonecos, figurinhas, fotos de jogadores. Amélie empreende uma caçada ao dono da caixa e transforma a vida dele ao reapresentá-lo ao passado. A garçonete descobre, assim, sua vocação: promover a felicidade alheia. O estratagema serve também para adiar a busca por sua própria realização, que ela teme não encontrar. Não que não sonhe com ela. No papel de seu príncipe, Amélie imagina o tímido Nino (o ator e diretor Mathieu Kassovitz), balconista de uma sex shop e, nas horas vagas, colecionador de fotos tiradas numa cabine automática do metrô e descartadas por seus donos.
Jean-Pierre Jeunet é um cineasta celebrado por sua concepção visual. Não se suspeitava, contudo, que ele fosse capaz desse tipo de romantismo e inocência. Seus primeiros filmes, Delicatessen e Ladrão de Sonhos (dirigidos em parceria com o quadrinista Marc Caro), são comédias de humor negro fascinantes, mas que beiram o pesadelo. No fim dos anos 90, porém, Jeunet passou por uma mudança. Esgotado pela experiência de ter feito um filme caro e ruim nos Estados Unidos – o quarto episódio da série Alien –, ele retornou à França ansioso por se repatriar. Manteve seu estilo único, mas decidiu que era hora de ser feliz. A Paris que ele mostra na tela, por exemplo, é fruto do lado mais generoso da sua devoção. Montmartre, um bairro tão banalizado pelo turismo, parece uma montanha encantada. Os fregueses do café Deux Moulins são tipos esquisitos mas, à sua maneira, adoráveis. As nuvens têm forma de animais, as cores são saturadas e o calçamento brilha sob a iluminação pública. Quando Amélie encontra Nino pela primeira vez, pode-se ver seu coração vermelho-elétrico batendo no peito. A ação é incessante e os detalhes, tão profusos, que é virtualmente impossível não ser tragado pelo filme.
Amélie é especial também por causa de Audrey Tautou. Seus olhos enormes, que a câmara sempre procura, foram o que primeiro atraiu a atenção do diretor, num cartaz do filme Instituto de Beleza Vênus. Jeunet convocou Audrey para um teste e, segundo sua estimativa, não demorou mais do que dez segundos para contratá-la. Todos os gostos, desejos e manias da personagem (incluindo aí seu humor meio ranzinza, tipicamente francês) pertencem, na verdade, a Jeunet. E todas as coisas belas que o diretor inventou para sua fita estão lá, também, para emoldurar Audrey. O resultado é exatamente o que ele pretendia: um filme que tem a missão nem sempre louvada, mas nem por isso menos louvável, desde que cumprida com honestidade, de fazer a platéia se sentir feliz.