sábado, 3 de março de 2012


Mestre confeiteiro

O diretor francês Jean-Pierre Jeunet
cria uma Paris de fábula, e uma heroína
de sonho, em Amélie Poulain


Audrey Tautou como Amélie: uma garçonete a serviço da felicidade alheia



Filha de "um refrigerador e uma neurótica", como diz o narrador do filme, a pobre Amélie Poulain teve uma infância incomum. Seu pai, um médico, era tão avesso a carinhos que bastava o toque de seu estetoscópio no peito da menina para que o coração dela disparasse de emoção – razão de ele ter diagnosticado Amélie como vítima de uma anomalia cardíaca. Deprimido pela neurastenia dos Poulain, o peixinho dourado da família tentou repetidas vezes se matar. Mamãe tanto rezou por um filho homem que, numa de suas visitas à igreja, foi involuntariamente assassinada por uma turista suicida, que escolheu aquele momento para se jogar do alto da torre. De certa forma, foi o que deixou Amélie livre para apreciar os pequenos prazeres da vida. Realmente pequenos, diga-se. As coisas favoritas de Amélie são mergulhar as mãos em sacas de cereais na mercearia, quebrar a crosta açucarada do crème brûlée com a colher e atirar pedrinhas na água, para vê-las ricochetear. Esses e muitos outros eventos sobre a formação da protagonista são narrados a toda a velocidade, em tom de desenho animado, durante a primeira meia hora de O Fabuloso Destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin d'Amélie Poulain, França/Alemanha, 2001), que estréia nesta sexta-feira em São Paulo e no Rio de Janeiro. O filme é um dos maiores fenômenos da história recente do cinema francês, e com motivo. Dirigido com entusiasmo palpável por Jean-Pierre Jeunet e estrelado pela irresistível Audrey Tautou, de 23 anos, Amélie é uma obra-prima da confeitaria: não tem grande teor nutritivo, mas seu sabor e sua apresentação são o que de melhor um pâtissier competente e criativo pode produzir.
Feitas as devidas apresentações, o filme se ocupa de mostrar os rumos insólitos que a vida de Amélie – agora uma solitária garçonete do café Deux Moulins, no bairro de Montmartre – toma a partir de 31 de agosto de 1997, dia em que a princesa Diana morreu num acidente em Paris. Atônita com o noticiário, Amélie deixa cair a tampa do seu perfume, que atinge um ladrilho do rodapé. Atrás dele, a protagonista encontra uma caixa em que algum menino, décadas antes, escondeu seus pequenos tesouros: bonecos, figurinhas, fotos de jogadores. Amélie empreende uma caçada ao dono da caixa e transforma a vida dele ao reapresentá-lo ao passado. A garçonete descobre, assim, sua vocação: promover a felicidade alheia. O estratagema serve também para adiar a busca por sua própria realização, que ela teme não encontrar. Não que não sonhe com ela. No papel de seu príncipe, Amélie imagina o tímido Nino (o ator e diretor Mathieu Kassovitz), balconista de uma sex shop e, nas horas vagas, colecionador de fotos tiradas numa cabine automática do metrô e descartadas por seus donos.
Jean-Pierre Jeunet é um cineasta celebrado por sua concepção visual. Não se suspeitava, contudo, que ele fosse capaz desse tipo de romantismo e inocência. Seus primeiros filmes, Delicatessen e Ladrão de Sonhos (dirigidos em parceria com o quadrinista Marc Caro), são comédias de humor negro fascinantes, mas que beiram o pesadelo. No fim dos anos 90, porém, Jeunet passou por uma mudança. Esgotado pela experiência de ter feito um filme caro e ruim nos Estados Unidos – o quarto episódio da série Alien –, ele retornou à França ansioso por se repatriar. Manteve seu estilo único, mas decidiu que era hora de ser feliz. A Paris que ele mostra na tela, por exemplo, é fruto do lado mais generoso da sua devoção. Montmartre, um bairro tão banalizado pelo turismo, parece uma montanha encantada. Os fregueses do café Deux Moulins são tipos esquisitos mas, à sua maneira, adoráveis. As nuvens têm forma de animais, as cores são saturadas e o calçamento brilha sob a iluminação pública. Quando Amélie encontra Nino pela primeira vez, pode-se ver seu coração vermelho-elétrico batendo no peito. A ação é incessante e os detalhes, tão profusos, que é virtualmente impossível não ser tragado pelo filme.
Amélie é especial também por causa de Audrey Tautou. Seus olhos enormes, que a câmara sempre procura, foram o que primeiro atraiu a atenção do diretor, num cartaz do filme Instituto de Beleza Vênus. Jeunet convocou Audrey para um teste e, segundo sua estimativa, não demorou mais do que dez segundos para contratá-la. Todos os gostos, desejos e manias da personagem (incluindo aí seu humor meio ranzinza, tipicamente francês) pertencem, na verdade, a Jeunet. E todas as coisas belas que o diretor inventou para sua fita estão lá, também, para emoldurar Audrey. O resultado é exatamente o que ele pretendia: um filme que tem a missão nem sempre louvada, mas nem por isso menos louvável, desde que cumprida com honestidade, de fazer a platéia se sentir feliz.

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